segunda-feira, março 16

O leão.

A maldição me cerca. Me caça. Me pega, me morde e me destila veneno. E no mesmo momento que eu perco a força e me entrego, abro os olhos pro horror que ocorre. Eu vivo ao lado de um leão, e guardo dentro de mim a carne de que ele tem fome.
Um leão. O horror. Uma boca gigantesca com um hálito fétido e enormes dentes amarelados e pontudos. Ele ruge. Ruge um rugido grave e assombroso que se ouve há quilômetros. Uma só patada me derruba no chão, e uma só mordida me rasga a carne. Mas ele não me mata, me deixa ali sangrando, na boca dele.
É nessa hora que eu me sinto longe de ti. E é nessa hora que tu me olha, e chora. Como é que eu vou te chamar nessa hora? Que voz tenho eu nessa hora? Não tinhas tu me deixado uma arma contra essa fera? O que é que eu fiz com a arma que tu me deste?
O leão lança um feitiço. Um feitiço que me cega pra verdade e me desperta pra ilusão. Então eu começo a ver beleza no sonho do mundo. Não beleza, mas uma combinação de sentimentos que fazem parte da ilusão que o feitiço causa. Mas eu posso observar sem cair nele. Enquanto eu observo a ilusão ainda me seduz, como um caleidoscópio de imagens se movendo numa superfície, me convidando a mergulhar nessa fantasia. Ali pode existir um mundo magnífico, desconhecido pra mim, eu só preciso mergulhar. Mas algo me impede, eu tenho receio. Sei que não devo. Mas continuo olhando, sendo atraído. Então consinto o movimento, resolvo dar uma olhadela dentro da superfície. É um mundo de magia, já estou cego, não me seguro mais, pulo pra dentro, não sei mais quem sou, me perdi.
Nesse mesmo momento sinto aquele hálito que me abocanha. Toda a cor desvanece. Toda inocência se perde. Era uma armadilha na qual eu me deixei cair.

segunda-feira, março 9

Hoje

O tempo em mim é apenas espera. Só a tua mão pode me levantar acima dessa desavença entre o que passou e o que virá, sendo que ambos, não importando a distância do ponto em que se encontram em mim, estão no mesmo lugar: a não existência.
Quando eu não participo do teu hoje, não encontro em mim esse ponto que emerge à superfície do imenso vazio que são os dias e as noites.
Antes que eu te conhecesse tu me notaste, e te fizeste notar por mim; e desde então eu te amo. E vi que o que eu antes amava, quando a tua presença ainda estava submersa em passado e futuro num emaranhado de anos, era a ânsia de que chegasse o momento em que eu te descobriria.
E no enleio daquela escuridão o teu olhar me desvelou a luz do eterno hoje. Do teu hoje, que é o anelo do coração que aqui pulsa no nada dos séculos.

quinta-feira, março 5

Palavra.

Quando tu me disse o que tu me disse, não foi como uma flecha que o tempo pronuncia, e depois perde a força nessa galáxia que é a memória, e cai no mar de um milhão de palavras, semelhantes entre si. Não, quando o meu ouvido reconheceu a tua voz, o meu coração estremeceu de uma maneira assombrosa; teve o vislumbre de algo que não é desse mundo. E desde então, foi como se tu me tivesse aberto uma porta pras coisas que são eternas, que estão num momento que sempre existiu, e que pra sempre vai existir, longe dos dias e noites que aqui se esvaem. Quando eu entro em sintonia contigo, algo muito, muito diferente passa a fazer parte de mim. Até assusta. A tua voz permanece em mim. Aquela palavra que tu disse me ressoa num estrondo indizível que me transporta prum ponto que tá acima de tudo o que passa.
Quando tu me olha, tu me despe de toda a imundície que, ano após ano, século após século, a lama desse mundo me impregna. Quando tu tá aqui comigo, a verdade me salta aos olhos, e eu sinto um chacoalhão que me desperta do torpor que a ilusão da vida provoca. Eu não quero mais me separar de ti. Qual é o momento em que tu te afastas, e eu não percebo, e caio pra ter um corpo outra vez? A luz que eu sinto quando eu to contigo não é minha. É a tua presença que me inunda e me mergulha em amor sobrenatural. Eu não posso pensar em outra coisa, eu quero te sentir aqui dentro. Sentir que tu existe.
Mas não é tu te afastas de mim. Fui eu. Fui eu, que pelo peso imundo desse corpo me desviei de ti pra cair no mais profundo abismo da minha miséria. Oh, céus dos céus, o que farei eu naquele lúgubre momento em que essa sórdida volúpia me alicia com pérfidos embustes imaginativos me arrastando pra longe do meu único amor? Trovejai em mim, céu, pois sou um hipócrita.

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